sábado, 5 de janeiro de 2013

Zezé, Ninita e Chiquim

"Não poderia começar o ano sem trabalhar numa ferramenta cheve nas provas dos vestibulares: AS CHARGES. E, claro, não deixaria de iniciar com fabuloso Henfil. Boa leitura" (Prof. Hugo Leonardo)



Uma ave magrinha, mas muito combativa, chamada Graúna; um bode intelectual, Francisco Orelana, que gostava de devorar livros; um “cangaceiro-macho-lutador”, porém dado a gestos carinhosos, de nome Zeferino. São estes os três personagens criados pelo cartunista Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988), para discutir – esporadicamente no semanário O Pasquim, diariamente no Jornal do Brasil e mensalmente na revista Fradim – os problemas sociais, políticos e econômicos por que passava o Brasil dos anos 1970. O curioso trio habita um lugar denominado Alto da Caatinga, onde tudo parece uma metáfora do país que o humorista quis retratar.

O cenário onde circulam os personagens é desolador. Os cactos, que acentuam a aridez local, são uma alegoria da escassez e do desconforto. As caveiras de gado – os macabros “Caverinos” – simbolizam a proximidade da morte. E o sol causticante, que não dá trégua ao grupo, representaria a situação sufocante imposta ao país pela ditadura militar instaurada em 1964. Neste ambiente de privações há, no entanto, espaço para delicadezas. Graúna, na intimidade, chama Zeferino de Zefé ou Zezé. O cangaceiro chama a ave de Ninita, e ambos tratam o “bode pensador” como Chico ou Chiquim. Só este último, talvez por seu caráter pragmático e pouco afeito a sentimentalismos, não adota apelidos afetuosos no tratamento com os parceiros.

Segundo o próprio Henfil, a criação de Zefé, Ninita e Chiquim foi inspirada em leituras variadas: Guimarães Rosa (1908-1967), Jorge de Lima (1895-1953) e – sobretudo – Os sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909) e os filmes de Glauber Rocha (1939-1981). Zeferino Ribamar das Mercês (nome completo de Zefé) foi o personagem que saiu em primeiro lugar da prancheta de Henfil. Ele reflete, de forma clara, as influências familiares do criador: seus ascendentes eram naturais do chamado polígono das secas, no norte de Minas Gerais, cujo clima, e os problemas sociais dele decorrentes, são bem semelhantes aos da região nordeste. Nas palavras do cartunista: “Zeferino seria um pouco como meu pai”. Seu Henrique fora tocador de acordeão e tropeiro durante a infância, na Fazenda Saco Grande, em Pirapora, ao norte de Belo Horizonte e, segundo o filho, tinha uma “visão arejada do mundo”.

Zeferino consegue, através de suas atitudes rústicas, expressar ao mesmo tempo a simplicidade, a resignação, a astúcia e a altivez do povo dos sertões. Trata-se, ao que parece, de um homem de meia idade cujos trajes, hábitos, discursos e práticas revelam sua condição de jagunço. O chapéu de couro, as cartucheiras enlaçadas ao corpo e as alpercatas reforçam sua condição social de sertanejo.


Traços fisionômicos marcantes – olhar agressivo, peito largo e fartos bigodes, associados a apetrechos pessoais como armas (facão, revolver ou carabina) e a rede em que dorme (própria da condição de despossuído) – constroem a imagem de “cabra valente” constantemente desmentida por gestos acovardados e por vezes hesitantes. Zeferino simbolizava a força bruta que poderia servir tanto à massa de dominados como às elites dominantes. No seu relacionamento com a Graúna, por exemplo, prevalecia uma postura arcaica, paternal, conservadora e repleta de preconceitos. Já com o bode Orelana ele tenta instaurar um pacto harmonioso.

A fala de Zeferino mistura um repertório sertanejo cheio de arcaísmos a enunciações próprias do espaço intelectual urbano, de onde Henfil retirava o conteúdo das suas histórias. Numa tira, ele anuncia ao bode as despesas médicas que vai deduzir de sua declaração de imposto de renda (“No exercício de 75 gastei 28 velas, 12 galinhas pretas e 18 charutos!”), mas, quando perguntado pelo parceiro se acha que os “técnicos do tesouro vão entender isso”, Zeferino conclui: “Então coloca na linguagem do Sul-maravilha: fui 28 vezes ao dentista, 12 ao cardiologista e 18 ao psicanalista!”, onde o “sul-maravilha” se torna a representação do Brasil venturoso vulgarizado nas propagandas oficiais do regime militar.

Através de uma linguagem rústica, o jagunço fazia reflexões cômicas sobre os mecanismos de opressão e os rumos da luta contra a ditadura. Ele é, na concepção de Henfil, a representação de um novo agente revolucionário: o povo fustigado pela miséria e pela fome que queria reverter essa situação por meio da violência. Ao contrário do sertanejo descrito por Euclides da Cunha como os “homens mais bravos e mais inúteis de nossa terra”, na caatinga inventada por Henfil “os bravos inúteis transformam-se em bravos úteis”, na expressão da escritora Walnice Galvão.

Se por um lado Zeferino concentrava um potencial simbólico “de esquerda”, por outro era dado a valores e práticas “de direita”, evidenciados no seu conservadorismo machista imposto pela força física e pelas armas. Quando ele contracena diretamente com a Graúna, este aspecto se torna bem evidente, numa relação com um claro teor sexual, especificamente sadomasoquista., porém temperada com pitadas de “luta de classes”. Em uma tira na qual apanha bastante de um Zeferino bêbado, por exemplo, ela ainda tem a força e o humor para dizer: “Às vezes penso em largar deste negocio de política e ficar só apanhando do Zezé”. A astuta Graúna das Mercês – seu nome completo – foi o segundo personagem a surgir no Alto da Caatinga. Ela tem a habilidade de silenciar e amedrontar, apesar da sua fragilidade física, o bode intelectual e o cangaceiro. Os traços rápidos que definem seu corpo, compondo algo similar a um ponto de exclamação, ajudam a compreender sua personalidade.
 No rosto da Graúna destacam-se os grandes olhos que não raro fixam o leitor, talvez para envolvê-lo mais nos seus argumentos. Os olhos são os reais definidores do seu temperamento, do seu estado de espírito e do seu humor. Os traços da ave, mais espessos nas primeiras histórias, foram gradativamente se tornando delgados e se resumindo, no final, ao estritamente necessário, de modo a fazer sobressair seu espírito arguto e atuante. É ela que confere dinâmica à vida na caatinga e questiona atuação e os discursos das esquerdas, através do que Henfil denominava “o canto feminino de autocrítica da Graúna”.
 
Pelo seu espírito crítico, ela poderia ser definida como a personagem que coloca às claras as questões subjacentes aos textos dos companheiros Zeferino e Bode Orelana. Sua ingenuidade, segundo o autor, a tornava “muito humana e muito passível de o leitor se identificar”. Seus “sonhos de consumo” eram os mais frugais possíveis. Uma fita durex, por exemplo. “Ela já ouviu falar disso, mas não sabe o que é. Está louca para alguém do sul-maravilha trazer uma fita durex pra ela conhecer”, a ‘fita durex’ sendo mais uma alusão ao clima de  euforia criado pela propaganda do governo.

Destaca-se, finalmente, a atuação do bode Francisco Orelana. Além de designar a conhecida espécie caprina, encontra-se no dicionário Aurélio a seguinte definição para a palavra bode: “Estado depressivo, ou de sonolência, provocado por droga, ou não. Situação embaraçosa, difícil, complicada ou deprimente”. Assim, o personagem que devorava livros podia servir muito bem como metáfora de um certo estado de espírito que caracterizava a intelectualidade brasileira no limiar da década de 1970, quando Orelana, o intelectual do Alto da Caatinga, veio ao mundo.

O papel do bode era repassar aos companheiros o saber absorvido através da leitura/deglutição dos livros e propalar uma proposta de conteúdo revolucionário. Segundo o depoimento de Henfil, a inspiração para a criação de personagem tão curioso veio de seus contatos com o amigo Elomar, músico e criador de bodes. De fato, Orelana com seu nariz saliente, barbicha, olhos e orelhas grandes, parece reproduzir as feições do cantador nordestino. Fora isso, o personagem exibe uma inocência quase virginal ante as coisas referentes à vida mundana, passando por vezes da condição de condutor à de conduzido.

Características como ambigüidade, contradição, covardia e neurose estão presentes em todos os componentes do grupo, mas em Orelana elas se associam e entram em conflito com seu caráter extremamente crítico. Por intermédio dele, Henfil parece querer manter aceso o debate intelectual num período que a falta de liberdade tornava especialmente medíocre em matéria de discussões. A participação de Orelana tinha o papel de aproximar os leitores dos impasses e conflitos que afligiam os intelectuais brasileiros depois do AI-5. É através do bode que Henfil defende suas posições políticas, propondo a subversão dos valores cultivados pela direita conservadora. “Lutar contra as injustiças sociais, a sociedade pequeno burguesa, as multinacionais, enfim o capitalismo imperialista!” declara Orelana numa tira.

Foi também por meio do personagem Chiquim que Henfil abordou o problema da autocensura. Tratava-se de denunciar aí não só a censura prévia, instituída pelo regime militar, mas também aquela outra, gerada pelo medo que tomava conta dos cidadãos, especialmente intelectuais e jornalistas, ao expressarem suas opiniões. Orelana e seu grupo tratavam de questões e problemas que na época atormentavam artistas e intelectuais “engajados” como Henfil. Estes não deixavam de correr riscos ao assumir uma postura de resistência ao regime. O humorista morreu precocemente, aos 44 anos, mas a tempo de assistir ao processo de redemocratização pelo qual lutou, com as armas da criatividade e do humor, através dos seus famosos personagens.


Maria da Conceição Francisca Pires é pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e autora da tese “Cultura e Política entre Fradins, Zeferinos, Graúnas e Orelanas” (UFF, 2006).
Saiba Mais - Bibliografia:

KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários nos Tempos da Imprensa Alternativa. SP: EDUSP, 2003.
MORAES, Denis. O Rebelde do Traço: a vida de Henfil. RJ: Jose Olympio.1996.
SALIBA, E. T. Raízes do Riso: a Representação Humorística na História brasileira da Belle Époque aos primeiros tempos do Rádio. SP: Cia das Letras, 2002.
VERENA, Alberti. O Riso e o Risível na História do Pensamento. RJ: Jorge Zahar. Ed. FGV, 1999.